Traduzido do original. Por Sabrina Faramarzi em WIRED.
Entre as coisas que não existiam antes da era da internet, fotos e vídeos marcados como “sludge content” se destacam tanto pelo excepcionalmente bizarro quanto pelo maravilhosamente fascinante.
Esse termo surgiu no Reddit como uma tentativa de descrever a inexplicável sensação de prazer que assistir a algo mundano pode provocar no espectador, os vídeos “estranhamente satisfatórios” incluem de tudo, desde lavadoras de pressão limpando calçadas até glacês de bolos marmorizados e máquinas industriais cortando gelo.
Definir o “estranhamente satisfatório” é como jogar uma bola de papel amassada e acertá-la no lixo de primeira. E depois assistir a isso em uma compilação, repetidamente.
The glazing of this cake
byu/blokkiesam inoddlysatisfying
A tag “estranhamente satisfatório” foi dominada por adolescentes, que criam vídeos psicodélicos mostrando mãos sem corpo misturando glitter, cola e outros materiais em uma substância parecida com massinha chamada slime. A tag #oddlysatisfying explodiu a proporções sem precedentes (são mais de 4 milhões de postagens marcadas no Instagram).
Mas isso não se limitou à fabricação de slime. Outras misturas rapidamente começaram a aparecer, como cortes de areia cinética, cortes de sabão, mistura de tinta, e há tantos vídeos com bolo, esponja, metal líquido, glacê – qualquer material que seja maleável o suficiente para ser satisfatório de assistir.
Clean cut through ice
byu/blokkiesam inoddlysatisfying
Seja derramando, cortando, lavando, misturando ou fatiando, surgiu um ecossistema inteiro desses vídeos, hipnotizando a internet em um sonho tecnicolor de satisfação instantânea. O que me fez perguntar: o que exatamente torna os vídeos “estranhamente satisfatórios” tão estranhamente satisfatórios?
Congruência visual
“Em 2018, não precisamos ser capazes de explicar por que gostamos de algo para que isso exista”, diz Kevin Allocca, chefe de tendências e cultura do YouTube e autor de Videocracia. Pergunto a Allocca por que ele acha que o “estranhamente satisfatório” se tornou um fenômeno online tão grande. “Não sei se é necessariamente algo ligado a este momento”, ele diz. Mas ele acredita que a mudança está na taxonomia, em agora ser possível categorizar o “estranhamente satisfatório”. “Acho que sempre tivemos o desejo de assistir a esse tipo de coisa, mas simplesmente não tínhamos uma linguagem para isso. Agora temos.”
Explicar por que gostamos de algo pode ser complicado, mas dentro da diversidade de vídeos “estranhamente satisfatórios” na web, talvez possamos encontrar algumas pistas. Ao contrário das versões mais antigas, o que esses novos vídeos têm em comum (além das cores vibrantes e do excesso de glitter) é a recriação deliberada de elementos visualmente congruentes que não têm nenhuma utilidade real além de satisfazer os espectadores. É intencional, onde antes era acidental, mas também é criativo.
“Há algo em encontrar congruência nos estímulos visuais que parece ser o valor. Acho que as pessoas estão começando a entender que há uma arte em criar coisas que são estranhamente satisfatórias.”, diz Allocca.
Um foco infantil
De acordo com o Google, o slime se tornou a maior tendência de DIY (faça você mesmo) de 2017 – chegando a causar uma escassez nacional de cola nos EUA. Ele tinha todos os elementos certos – materiais baratos e acessíveis, rápidos e fáceis de fazer, visualmente cativantes e, claro, contava com um exército de adolescentes com tempo e conhecimento online para replicar os movimentos uns dos outros.
Mas o mais interessante é que jovens, equipados digitalmente, assistem a esses vídeos antes de dormir para ajudá-los a pegar no sono. Por conta disso, surgiram vários relatos de que assistir a vídeos de slime e outras coisas sob o guarda-chuva do “estranhamente satisfatório” ajuda a relaxar e acalmar as pessoas, o que levou a algumas conjecturas sobre se o “estranhamente satisfatório” seria, de fato, outro ramo do ASMR.
O professor Craig Richard, fundador da ASMR University, acredita que sim – embora seja um tipo de gatilho específico que ele chama de ASMR mediado por observação. “O que muitos desses vídeos têm em comum é que apresentam pessoas fazendo algo habilidoso com as mãos”, ele diz. Richard também acredita que essa segunda onda cativou o público mais jovem porque apela às nossas tendências mais infantis:
“Isso apela ao nosso cérebro mais jovem porque somos programados para ficarmos fascinados por movimentos manuais. Evoluímos para aprender habilidades motoras finas observando o que outra pessoa faz com as mãos, porque o benefício disso é que você pode acabar aprendendo algo.”
Pode-se argumentar que o “estranhamente satisfatório” viu um aumento na popularidade impulsionado pelo público mais jovem, porque os jovens estão expostos ao tempo de tela mais cedo e, assim, não têm tantas experiências táteis “estranhamente satisfatórias” no dia a dia no mundo físico. Em vez disso, estão deliberadamente criando essas experiências para consumo online.
Assim como o ASMR, parece que o público assiste a esses vídeos como uma espécie de microterapia – uma dose de alívio para reduzir a ansiedade. A Dra. Anita Deák, professora de psicologia da Universidade de Pécs, acredita que uma das razões pelas quais as pessoas dizem que assistir a esses vídeos as ajuda a relaxar é algo chamado teoria dos neurônios-espelho:
“Os neurônios-espelho são neurônios motores no cérebro que se tornam ativos quando vemos alguém realizando uma ação. Mas esses neurônios também são ativados quando nós mesmos realizamos a ação.”
Essencialmente, os espectadores derivam prazer desses vídeos como se estivessem, de fato, realizando a ação. Embora Deák não acredite que possamos especular sobre os efeitos calmantes que esses vídeos dizem ter, ela acha que sua popularidade reside no “impacto instantâneo” da experiência – mas que encontrariam mais efeitos de alívio de ansiedade se tivessem essas experiências na vida real:
“Quando você faz isso na vida real, você não tem apenas a informação visual, mas também cinestésica, acústica, olfativa. Na minha opinião, seria mais relaxante se você tivesse a experiência completa.”
A cinematicidade do cotidiano
Lembro-me distintamente da minha primeira experiência “estranhamente satisfatória”. Foi em 2011, quando a Lindt exibiu seu famoso comercial “Sonho de Chocolate” para o chocolate Lindor, da Lindt.
No anúncio de 30 segundos, o centro cremoso de chocolate continua a encher, ameaçando transbordar pelas bordas. Mais tarde, fiquei obcecada em derreter chocolate, tentando recriar aquela sensação, ainda que por um momento. Era viciante, e o prazer da ação era, de fato, mais satisfatório do que consumir o chocolate depois.
A publicidade tem usado o conceito do “estranhamente satisfatório” por décadas para criar vídeos visualmente impactantes que capturam nossa atenção. Eles mostram momentos perfeitos, ações perfeitas. Mas essas são experiências fabricadas, construídas por especialistas. Na vida real, o chocolate do comercial da Lindt derramaria, mas no anúncio, ele é perfeito. Isso levou a algumas teorias de que o “estranhamente satisfatório” seria uma busca pela sensação de completude, o sentimento de “exatamente certo”, que muitos portadores de TOC buscam. Porém, na diversidade dos vídeos sob o guarda-chuva do “estranhamente satisfatório”, encontramos tanto tarefas concluídas quanto inacabadas, tanto a criação quanto a destruição de algo. Fica claro que há algo para todos, e a satisfação derivada desses vídeos talvez tenha uma explicação muito mais simples.
Em um ensaio escrito por Evan Malone, professor de filosofia da arte e do cinema na Universidade de Houston, ele descreve sua interação com o “estranhamente satisfatório” como um “momento diário de êxtase transcendental assistindo a vídeos de pessoas lavando calçadas com pressão”. Para Malone, o “estranhamente satisfatório” é uma experiência comum, mundana e cotidiana que, quando funciona da maneira certa, assume uma sensação cinematográfica.
Malone acredita que essa cinematicidade do cotidiano está sendo replicada por essa nova onda de vídeos “estranhamente satisfatórios” na internet, mas também assume o que o filósofo francês Baudrillard conceituou como o “hiper-real”:
“No começo, parecia haver esse elemento de hiper-realidade, é como sua vida real, mas melhor! É mais real, e por ser mais real, é mais cinematográfico, é perfeito de certa forma. E agora parece que há uma segunda onda de coisas que parecem ainda mais hiper-reais: as cores são mais ricas, é mais cinematográfico.”
Mas como o “estranhamente satisfatório” se manifesta?
“Há algum tipo de qualidade estética que é visual, mas também pode ser tátil. Pode ser o som, como um clique agradável quando algo se fecha. Parece haver algo unificador em todas essas coisas vastamente diferentes que envolvem modalidades sensoriais completamente distintas.”
Seja uma geração encontrando alívio ao assistir à manipulação lúdica de materiais, o “estranhamente satisfatório” por um momento oferece a promessa de perfeição, de um caos maravilhosamente controlado:
“Recebemos essas explosões de cinematicidade que invadem nossa experiência consciente quando algo funciona ou se encaixa da maneira certa, de um jeito que raramente acontece em nossa vida real, geralmente desajeitada. É um escapismo reconfortante, algo familiar, mas mais ordenado, mais cinematográfico que a realidade.”
Mas, no fim, Malone acredita que não há necessidade de depender de vídeos na web para encontrar o “estranhamente satisfatório”. “Eu odiaria que as pessoas assistissem a esses vídeos e sentissem que são dependentes desse estímulo”, ele diz. “Os momentos mais satisfatórios para mim ainda são aqueles que acontecem na minha experiência vivida.”
Seja acertar aquela bola de papel no cesto de lixo na primeira tentativa, cortar o bolo de forma perfeita ou parar por um momento para ver seu barista artisticamente girar o leite no topo do seu latte, pode ser mais fácil do que você imagina encontrar o “estranhamente satisfatório” no seu cotidiano. O que, afinal, é uma ideia estranhamente satisfatória por si só.
Traduzido do original. Por Sabrina Faramarzi em WIRED.